DIREITO (IM)PURO: KELSEN X PERELMAN
Como visto no post anterior, inúmeros aspectos da vida pessoal e acadêmica destes autores tão diversos, convergem, mostrando que eles poderiam guardar determinada semelhança. Entretanto, as suas divergências no campo teórico são inúmeras e abissais.
Podemos cogitar que tais dissonâncias brotam, inicialmente, em função dos questionamentos científicos propulsores da produção científica de cada um, que ao certo eram bem distintos.
Kelsen, envolto no círculo de Vienne, se angustiava com as questões relacionadas ao que seria a ciência do direito. Preocupava-se, pois, em constituir o Direito com uma ciência. Desta forma, pela própria necessidade de definição de um objeto específico e próprio desta ciência, tenta purificar o Direito, extraindo dele o que lhe seria próprio, qual seria o seu objeto, ou seja, a norma.
Perelman, por sua vez, não discorda da tentativa de Kelsen de tornar o Direito ciência, e para tal a aplicação de método, racionalismo, pensamento sistemático e lógico. Podemos dizer, então, que o início das divergências se daria ao fato de Kelsen ter negligenciado, ou até mesmo negado determinados pontos que para Perelman não poderia ser dissociado do Direito e sua aplicabilidade, se configurando assim como itens de indiscutível relevância.
Kelsen nos traz que o Direito, para ser ciência deveria ser livre de todas as ideologias, de qualquer interferência externa de caráter não jurídico, excluindo tudo aquilo que seria estranho ao Direito. Daí brotaria o seu caráter de pureza, e conseqüentemente, de ciência aos moldes epistemológicos. Desta forma, se constituiria a ciência do direito.
Na concepção de Kelsen, era preciso expulsar do ambiente científico os juízos de valor, aliás, como já o haviam feito as demais disciplinas científicas. Desta forma, afastaria a arbitrariedade e o distanciamento das decisões às normas, que deveriam se configurar como as bases dessas decisões. Tal idéia não surge somente com Kelsen, outros estudiosos do Direito e do fenômeno jurídico nos traz essa idéia, podemos pensar em Beccaria e sua obra “Dos Delitos e das Penas” que nos diz,
“Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões [...] Seguindo a letra da lei, não se terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos. Nem essa licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitraria e muitas vezes com intenção venal.”
Entretanto, vemos com Kelsen uma radicalização deste pensamento, ou, em seus termos próprios, uma purificação dessa idéia.
Perelman salienta, por sua vez, que isso não poderia ocorrer, alguns fatores estariam atrelados e indissolúveis ao fenômeno jurídico, a saber: a interpretação do texto legal, seja ele uma lei ou até mesmo a jurisprudência, a argumentação e a sua representação e importância na aplicabilidade do direito, o caráter ético que se veria enfraquecido, entre outros fatores. Como o próprio Perelman elucida,
“Não basta dizer que a ciência do direito só deve ocupar-se com o que não é controverso: ela ficaria, então, na superfície formal do Direito e não cumpriria o papel essencial de guia dos juízes em busca de soluções conformes ao Direito e à equidade. Ela não pode cumprir esse papel sem a busca de justificações, que deixariam as decisões conformes à equidade e à segurança, ou seja, à justiça formal que exige que se trate da mesa forma situações essencialmente semelhantes. Mas, para alcançar esses fins, ela não pode dispensar argumentações que justificariam as soluções preconizadas. É o recurso a estas, à lógica jurídica por ela empregada, que explica as características próprias da deliberação, da motivação e do litígio em direito. Se se quisesse limitar a lógica jurídica formal, deformar-se-ia a própria realidade do raciocínio dos juízes e dos advogados.” (Perelman, 2005, p. 419)
Outro ponto referente ao distanciamento dos estudos dos autores seria que, Kelsen entendia o fenômeno jurídico através de uma lógica formal, positiva, metódica rígida. Explorando descrições normativas complexas e detalhistas, tentando, até mesmo, uma proximidade do Direito com a estrutura das ciências naturais e sua previsibilidade. O que podemos dizer ser a cerne do celebre binômio do que seria o “ser” e o “dever ser”.
Perelman, por sua vez, afirmava que o “dever ser” de Kelsen está muito distante do “ser” enquanto a realidade dos tribunais.
Quanto à validade das normas, Kelsen acredita que a validade de uma norma estaria atrelada a sua fonte emanadora, ou seja, o Estado, instituidor soberano e a hierarquização das normas onde cada uma guarda correlação com a sua superior, devendo ser sincrônicas para que assim sejam válidas, formando uma pirâmide e como pico desta pirâmide teríamos a norma fundamental.
Perelman, por sua vez, afirma que,
“Ao ignorar o papel político do direito, a teoria pura do direito não só peca por abstração, mas ainda falseia a realidade jurídica. O exemplo preciso que acabamos de assinalar contradiz redondamente a afirmação de Kelsen de que “uma lei só pode ser válida em virtude da Constituição”.” (Perelman, 2005, p. 412)
Quanto à interpretação dos textos legais a divergência é discrepante, Perelman afirma que,
“Os textos jurídicos, trate-se de leis ou de precedentes judiciários, são habitualmente suscetíveis de interpretações variadas, seja extensivamente, por via de analogia, por exemplo, seja restritivas, mercê das distinções que o intérprete poderia neles, introduzir. As diversas interpretações favorecem um ou outro interesse, um ou outro valor, que estão em conflito em cada caso específico. A interpretação escolhida, ao restringir ou ampliar o campo de aplicação da norma, se pronunciará em favor de um dos valores contrapostos. O juiz, com sua interpretação, se adapta aos valores do meio. Esse esforço de adaptação será facilitado graças ao recurso freqüente do legislador (e do juiz na common law) a noção de conteúdo variável, tais como “os bons costumes”, “a ordem pública”, “o interesse geral”, “o razoável”, que se definem, em cada caso específico, com relação a valores, a aspirações, a usos e crenças que dominam em dado meio. As diferentes teorias jurídicas contribuem para esse esforço de adaptação.” (Perelman, 2005, p. 453)
Em contra partida, Kelsen discorre sobre a necessidade de uma aplicação rígida e lógica dos preceitos legais, a flexibilização da norma em função da sua interpretação e o poder da argumentação nas situações do cotidiano jurídico são deixadas a parte.
Enfim, as distinções entre a idéias de Perelman e Kelsen correm ao infinito. Todavia, podemos observar que ainda guardam algumas, inesperadas, similaridades.
Os teóricos se conectam num aspecto relacionado à questão da justiça. Ambos discordam da idéia de uma justiça acabada, ou seja, da justiça advinda de uma revelação divina, mística. Acreditam na relatividade dos valores e da construção destes. Apesar de que, em inúmeros outros aspectos relacionados à questão da justiça eles também discordem.
Por fim, podemos observar a magnitude e importância destes dois grandes teóricos, cada um ao seu modo construindo e desconstruindo o Direito e suas questões correlatas, de forma direta ou indireta. E assim nos atermos à complexidade e diversidade de idéias, métodos e possibilidades que o Direito trouxe e ainda trará como com terreno inteiramente fértil que é, e ansioso por adaptações, questionamentos, reflexões a cerca da sua estrutura, aplicabilidade, função social e científica.
Referências bibliográficas:
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2011.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2011.
KELSEN, Hans. O que é justiça? a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____________. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS – TYTECA, Lucie.Tratado da argumentação – A Nova Retórica. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.