quinta-feira, 22 de dezembro de 2011



DIREITO (IM)PURO: KELSEN X PERELMAN


Como visto no post anterior, inúmeros aspectos da vida pessoal e acadêmica destes autores tão diversos, convergem, mostrando que eles poderiam guardar determinada semelhança. Entretanto, as suas divergências no campo teórico são inúmeras e abissais.

Podemos cogitar que tais dissonâncias brotam, inicialmente, em função dos questionamentos científicos propulsores da produção científica de cada um, que ao certo eram bem distintos.

Kelsen, envolto no círculo de Vienne, se angustiava com as questões relacionadas ao que seria a ciência do direito. Preocupava-se, pois, em constituir o Direito com uma ciência. Desta forma, pela própria necessidade de definição de um objeto específico e próprio desta ciência, tenta purificar o Direito, extraindo dele o que lhe seria próprio, qual seria o seu objeto, ou seja, a norma.

Perelman, por sua vez, não discorda da tentativa de Kelsen de tornar o Direito ciência, e para tal a aplicação de método, racionalismo, pensamento sistemático e lógico. Podemos dizer, então, que o início das divergências se daria ao fato de Kelsen ter negligenciado, ou até mesmo negado determinados pontos que para Perelman não poderia ser dissociado do Direito e sua aplicabilidade, se configurando assim como itens de indiscutível relevância.
Kelsen nos traz que o Direito, para ser ciência deveria ser livre de todas as ideologias, de qualquer interferência externa de caráter não jurídico, excluindo tudo aquilo que seria estranho ao Direito. Daí brotaria o seu caráter de pureza, e conseqüentemente, de ciência aos moldes epistemológicos. Desta forma, se constituiria a ciência do direito.

Na concepção de Kelsen, era preciso expulsar do ambiente científico os juízos de valor, aliás, como já o haviam feito as demais disciplinas científicas. Desta forma, afastaria a arbitrariedade e o distanciamento das decisões às normas, que deveriam se configurar como as bases dessas decisões. Tal idéia não surge somente com Kelsen, outros estudiosos do Direito e do fenômeno jurídico nos traz essa idéia, podemos pensar em Beccaria e sua obra “Dos Delitos e das Penas” que nos diz,

“Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões [...] Seguindo a letra da lei, não se terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos. Nem essa licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitraria e muitas vezes com intenção venal.”

Entretanto, vemos com Kelsen uma radicalização deste pensamento, ou, em seus termos próprios, uma purificação dessa idéia.  

Perelman salienta, por sua vez, que isso não poderia ocorrer, alguns fatores estariam atrelados e indissolúveis ao fenômeno jurídico, a saber: a interpretação do texto legal, seja ele uma lei ou até mesmo a jurisprudência, a argumentação e a sua representação e importância na aplicabilidade do direito, o caráter ético que se veria enfraquecido, entre outros fatores. Como o próprio Perelman elucida,

“Não basta dizer que a ciência do direito só deve ocupar-se com o que não é controverso: ela ficaria, então, na superfície formal do Direito e não cumpriria o papel essencial de guia dos juízes em busca de soluções conformes ao Direito e à equidade. Ela não pode cumprir esse papel sem a busca de justificações, que deixariam as decisões conformes à equidade e à segurança, ou seja, à justiça formal que exige que se trate da mesa forma situações essencialmente semelhantes. Mas, para alcançar esses fins, ela não pode dispensar argumentações que justificariam as soluções preconizadas. É o recurso a estas, à lógica jurídica por ela empregada, que explica as características próprias da deliberação, da motivação e do litígio em direito. Se se quisesse limitar a lógica jurídica formal, deformar-se-ia a própria realidade do raciocínio dos juízes e dos advogados.” (Perelman, 2005, p. 419)

Outro ponto referente ao distanciamento dos estudos dos autores seria que, Kelsen entendia o fenômeno jurídico através de uma lógica formal, positiva, metódica rígida. Explorando descrições normativas complexas e detalhistas, tentando, até mesmo, uma proximidade do Direito com a estrutura das ciências naturais e sua previsibilidade. O que podemos dizer ser a cerne do celebre binômio do que seria o “ser” e o “dever ser”.

Perelman, por sua vez, afirmava que o “dever ser” de Kelsen está muito distante do “ser” enquanto a realidade dos tribunais.

Quanto à validade das normas, Kelsen acredita que a validade de uma norma estaria atrelada a sua fonte emanadora, ou seja, o Estado, instituidor soberano e a hierarquização das normas onde cada uma guarda correlação com a sua superior, devendo ser sincrônicas para que assim sejam válidas, formando uma pirâmide  e como pico desta pirâmide teríamos a norma fundamental.

Perelman, por sua vez, afirma que,

 “Ao ignorar o papel político do direito, a teoria pura do direito não só peca por abstração, mas ainda falseia a realidade jurídica. O exemplo preciso que acabamos de assinalar contradiz redondamente a afirmação de Kelsen de que “uma lei só pode ser válida em virtude da Constituição”.” (Perelman, 2005, p. 412)

Quanto à interpretação dos textos legais a divergência é discrepante, Perelman afirma que,

“Os textos jurídicos, trate-se de leis ou de precedentes judiciários, são habitualmente suscetíveis de interpretações variadas, seja extensivamente, por via de analogia, por exemplo, seja restritivas, mercê das distinções que o intérprete poderia neles, introduzir. As diversas interpretações favorecem um ou outro interesse, um ou outro valor, que estão em conflito em cada caso específico. A interpretação escolhida, ao restringir ou ampliar o campo de aplicação da norma, se pronunciará em favor de um dos valores contrapostos. O juiz, com sua interpretação, se adapta aos valores do meio. Esse esforço de adaptação será facilitado graças ao recurso freqüente do legislador (e do juiz na common law) a noção de conteúdo variável, tais como “os bons costumes”, “a ordem pública”, “o interesse geral”, “o razoável”, que se definem, em cada caso específico, com relação a valores, a aspirações, a usos e crenças que dominam em dado meio. As diferentes teorias jurídicas contribuem para esse esforço de adaptação.” (Perelman, 2005, p. 453)

Em contra partida, Kelsen discorre sobre a necessidade de uma aplicação rígida e lógica dos preceitos legais, a flexibilização da norma em função da sua interpretação e o poder da argumentação nas situações do cotidiano jurídico são deixadas a parte.

Enfim, as distinções entre a idéias de Perelman e Kelsen correm ao infinito. Todavia, podemos observar que ainda guardam algumas, inesperadas, similaridades.

Os teóricos se conectam num aspecto relacionado à questão da justiça. Ambos discordam da idéia de uma justiça acabada, ou seja, da justiça advinda de uma revelação divina, mística. Acreditam na relatividade dos valores e da construção destes.  Apesar de que, em inúmeros outros aspectos relacionados à questão da justiça eles também discordem.

Por fim, podemos observar a magnitude e importância destes dois grandes teóricos, cada um ao seu modo construindo e desconstruindo o Direito e suas questões correlatas, de forma direta ou indireta. E assim nos atermos à complexidade e diversidade de idéias, métodos e possibilidades que o Direito trouxe e ainda trará como com terreno inteiramente fértil que é, e ansioso por adaptações, questionamentos, reflexões a cerca da sua estrutura, aplicabilidade, função social e científica.


Referências bibliográficas:

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2011.
KELSEN, Hans. O que é justiçaa justiça, o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____________. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS – TYTECA, Lucie.Tratado da argumentação – A Nova Retórica. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.
Os Quadrinhos Puros do Direito


Em Os Quadrinhos Puros do Direito, Warat, Luis A. e Cabriada Gustavo P. trazem de forma lúdica e irreverente uma breve apresentação do que seria a Teoria Pura do Direito. Através de tirinhas em quadrinho fazem uma divagação sucinta, porém contundente,  sobre algumas idéias de Kelsen. Vale a leitura tanto pela diversão, quanto pela percepção de uma nova forma de ver a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.






















Quem desejar, pode acessar o HQ tanto em formato PDF como em JPEG

Divergindo Concordando


Ao estudar as obras de Hans Kelsen e Chaim Perelman, nota-se facilmente o rio que os separa no que diz respeito ao campo das ideias sobre o Direito. Por outro lado, talvez o mais óbvio de todos, uma comparação a respeito de suas vidas pode nos levar a muitas características comuns.

Por exemplo, os dois são judeus e se tornaram Doutores em Direito muito cedo. Kelsen 1973, aos 24 anos e Perelman em 1934, aos 22. Ambos lecionavam em universidades, foram perseguidos pelo nazismo, deixando a docência nos países que se encontravam por essa razão. Possuíam títulos acadêmica no campo da filosofia, participaram de importantes grupos de intelectuais - Kelsen ao integrar um seleto grupo que reunia intelectuais do porte de Carnap, Wittgenstein, Schlick e Freud, conhecido como “Círculo de Viena”, e Perelman a Escola de Bruxelas, em conjunto com seus mestres belgas Eugène Dupréel e Marcel Barzin  -. Além de pesquisarem, discutirem e desenvolverem importantes trabalhos a respeito da filosofia do direito e da ciência jurídica, receberam inúmeros títulos honoríficos nas universidades onde lecionaram.

Tantas características em comum nos fazem pensar o que os levaram a divergir no futuro e, para encontrar uma resposta, podemos procurar evidências em suas trajetórias de vida. As evidências começam pelo nome, Kelsen significa “rio estreito”. Depois, no início de sua vida acadêmica, nas primeiras aulas que assistiu na Universidade de Viena, ele se viu decepcionado. “O romanista Czihlarz ensinava direito romano, mas não levava em conta a importância da matéria para a sociedade da época. Logo viu que, ao estudar seu manual, podia assimilar em poucas semanas o que o professor levaria um semestre inteiro para expor em uma elocução não muito vivaz” (A autobiografia de Kelsen, p. 40).

Tão logo tomamos conhecimento a esse respeito e já nos vem à mente a pergunta: “se Kelsen já pensava assim na época e foi um grande jurista, como incutir na mentalidade do estudante de hoje que ele tem de assistir aulas? O germanista Zallinger era um orador muito ruim. Falava mediante grande esforço. Ouvi-lo era uma verdadeira tortura. Rui Barbosa foi um grande jurista, mas suas palestras ou exposições também eram muito cansativas e entediantes, pois ele lia o texto. ‘Depois de pouco tempo desisti de assistir à maioria das aulas e voltei-me para a leitura de obras filosófica’” (A autobiografia de Kelsen, p. 40).

Bom, a partir daqui, já se pode imaginar a razão pela qual Kelsen se identificou tanto com o positivismo e a objetividade científica. Mas ainda há outro indício que justifica essa afinidade. Kelsen, na verdade, pretendia ser matemático, porém, ao atender ao desejo paterno, iniciou a Faculdade de Direito de Viena no ano de 1900. Talvez essa seja a justificativa para o sistema kelseniano e suas características, como a certeza e a exatidão. Por isso, o sistema kelseniano é “[...] erigido de forma praticamente binária, com a norma contendo praticamente todo o Direito”.

O jovem Perelman também se viu atraído pela exatidão. “Iniciou seus estudos baseando-se na lógica e no positivismo, inclusive tendo retornado à Polônia em 1936 para um curso de lógica junto ao professor Theodore Kotarbiski e de outros eminentes lógicos poloneses” (Frank, 2003: 254). Contudo, o fato que seria o marco para a mudança na vida de Perelman, também viria a ser o divisor de águas no que diz respeito aos seus pensamentos quando comparados aos de Kelsen.

Ao assistir os horrores do conflito e participar da resistência belga contra os nazistas, no final da Segunda Guerra, seu interesse voltou-se contra todo tipo de absolutismo, inclusive o filosófico. Assim, inicia nas ciências humanas e sociais um movimento que priorizou a importância da moral, dos valores e da justiça diante do formalismo lógico e da ditadura da verdade científica. Dentro desse contexto, ele propõe uma postura argumentativa contra o predomínio do formalismo cartesiano no pensamento europeu, que segundo ele, marcara a filosofia nos último três séculos ao impor uma concepção de verdade em moldes objetivos, universais e demonstrativos. É através desse pensamento, que ele chama atenção para a razão prática, que tem a retórica como centro metodológico para sua teoria, e no humanismo o ideal político de justiça social e individual (Maneli: 2004: 191ss.).

Suas influências, reconhecidamente, surgiram pela antiga discussão entre retórica, filosofia e dialética, sobretudo a partir da filosofia sofística e dos diálogos de Platão, bem como do relevante legado de Aristóteles nessa área. Todavia, diferente dos outros autores da argumentação, Perelman não se limitou a reconstituir o pensamento antigo. Como o próprio disse: “é evidente que nosso tratado de argumentação ultrapassará em certos aspectos – e amplamente – os limites da retórica antiga” (Op. cit., 06).

Há evidências que sugerem que Perelman tenha desenvolvido interesse no antigo pensamento grego talvez por influência que recebeu do seu mestre Eugène Dupréel, um admirador do pensamento grego. O próprio Perelman se admira que Dupréel, sendo um homem “que tanto conhecia a filosofia grega, não tenha percebido a importância da retórica para sua própria filosofia”.

Dentro dessa retrospectiva, é importante perceber que diferentes pessoas, inseridas num mesmo contexto, podem reagir e pensar de maneiras opostas. A perseguição nazista fez Kelsen entender, dentro do seu pensamento objetivo, que para se assegurar a justiça, o guardião da Constituição deveria ser um tribunal independente dos poderes executivo e legislativo, porque os atos do próprio presidente, enquanto membro do executivo, também deveriam ser controlados. E foi pensando na justiça que o maior objetivo da sua obra foi analisar e propor os fundamentos e métodos da teoria jurídica. Ao passo que Perelman, também vítima da perseguição, passou a se abrir para o lado subjetivo das ciências humanas ao defender a dialética como meio para se alcançar a justiça.

Ops, mais um ponto comum! Os dois possuíam um mesmo objetivo: um sistema jurídico justo. E como sugere o seu próprio nome, Kelsen optou por enveredar suas águas por caminhos mais estreitos a fim alcançar efetivamente seu destino. Já Perelman, optou por seguir rotas variadas que traziam, cada uma, possibilidades diversas para enfim encontrar o caminho pretendido. Contudo, entre todas essas idas e vindas, uma coisa se pode concluir certamente: ambos pretendiam encontrar o mesmo caminho para desaguar no mesmo mar. 


Referências bibliográficas:


VENDRUSCOLO, W. Considerações sobre a vida e obra de Hans Kelsen. Rev.
Ciên. Jur. e Soc. da Unipar. Umuarama. v. 10, n. 1, p. 199-218, 2007.
Disponível em <http://revistas.unipar.br/juridica/article/viewFile/648/565> Acessado em 18 de dez de 2011
HARTMANN, Érica O. Chaim Perelman: Uma introdução a teoria da argumentação – A nova retórica. V.3 n. 1. Curitiba. Jan/jul. 2007. Raizes Juridicas Disponível em: http://raizesjuridicas.up.edu.br/arquivos/raizesjuridicas/Revista%204/Chaim.pdf. Acesso em: 17 dez 2011.
LIMA, Daniela.  Hans Kelsen: breve incursão biográfica e literária. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 82, 01/11/2011 Disponível em: 
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8639http://www.browne.adv.br/publicacoes/filosofia/002.html.  Acesso em 20 dez. 2011.